domingo, 19 de setembro de 2004

O PAM

Depois de 2 meses meio perdida nas terras altas do Huambo, descobri que a maneira mais fácil de me adaptar à vida aqui, e já que os angolanos não facilitam a vida dos expatriados, é dar-me precisamente com os expatriados. São, na maior parte das vezes, tal como eu, pessoal que trabalha em ONGs. Vivem quase todos na cidade do Huambo, e não no mato como eu. No fim de semana encontro-me com eles muitas vezes e fazemos umas festinhas. Alguns vivem aqui mesmo ao pé, os da Halo Trust, a ONG que anda a fazer a desminagem. Há ainda os portugueses da FEC, professores, que também são muito fixes. E há muitos mais, mas com quem não me dou tão bem, da Cruz Vermelha, Solidarité, Médicos do Mundo, Safe Children, Movimundo, entre muitas outras ONG daqui. Portanto, estou sempre ansiosa que chegue o fim de semana e de me livrar das pestinhas do Tchindjenje.

Apesar do convívio muito mais fácil com o pessoal expatriado, esta semana tive uma conversa completamente surreal com um americano, responsável máximo do WFP (Programa Alimentar Mundial). Conheci-o este fim de semana com a conversa do costume,

(à lá José Saramago)

Olá, como te chamas, O meu nome é tal, E o teu, Trabalhas onde, Em tal parte, E tu, Eu trabalho numa aldeia chamada Tchindjenje, a 100 km daqui, mas venho passar o fim de semana ao Huambo, Ai sim, mas porquê,

(E a partir daqui é que começou o surrealismo)

Porque lá não há nada, especialmente porque não há nada para comer, preciso de vir comprar comida e como não há luz todo o dia, não há comida que aguente no frigorífico, blábláblá, Mas tem que haver comida, nós distribuímos,

(nota para os mais distraídos, o Programa Alimentar Mundial é responsável pela distribuição de comida às populações em situação de emergência, como seja os últimos anos de guerra aqui em Angola. Normalmente quando as situações passam de emergência a desenvolvimento, o PAM deixa de distribuir gradualmente comida e outros programas começam a incentivar o cultivo, o comércio, etc, logo o PAM não vai durar muito mais tempo cá, porque Angola já não se encontra em situação de emergência. No entanto, mesmo durante a distribuição do PAM, apenas as famílias ou as localidades mais fragilizadas recebem alimentos, normalmente para fazer face a casos severos de subnutrição, normalmente em situações, como o Tchindjenje é um caso, em que cultivar é complicado porque não há segurança nos terrenos de cultivo por causa das minas. Para além de que o PAM só distribui milho, óleo, açúcar e penso que mais nada)

(continuando com a história surreal)

Mas eu não sou um caso severo de subnutrição, com que lata é que vou ao PAM buscar comida que faz falta a outras pessoas, Então se precisares de alguma coisa, posso-te mandar pelo camião do PAM, mandas-me só um e-mail, Mas lá não há e-mail, Como não há, não tens Internet, Não, claro que não, nem há luz, Então telefona-me, Mas será que não percebes que também não há telefone, Como não há telefone, o que é que fazes afinal, sem net nem telefone, vês televisão, Também não há televisão nem rádio, Porquê, não há cabo lá, Cabo, mas aqui não há tv por cabo, Mas como, claro que há, Claro que não, é por antena, e lá precisaria de uma antena parabólica enorme, E como e que vais para lá, há aeroporto, Claro que não há aeroporto, mas há uma pista de terra batida, Então vais de avião, Claro que não, vou de carro, Mas a estrada está minada, E os vossos camiões de comida, não passam lá, Dão a volta, Mas dão a volta por onde, não dá para dar a volta, Mas queres dizer que passas na estrada minada, Pois, que remédio, Mas não pode ser, blábláblá…

Recordo que estamos a falar do chefe do PAM! Sempre pensei que o pessoal que aqui trabalha tivesse um pouco mais de noção da vida fora da redoma em que vive: numa casa espectacular, com cozinheira, segurança, carro, televisão por satélite, rádio fm, luz de gerador, água carregada à cabeça por alguém que não interessa quem até um poço com motobomba para por a água na torneira, telefone, Internet, etc, etc. Bom, o resto do pessoal tem, mas aquele gajo é mesmo uma tristeza. Aliás, estamos (eu, outro americano e um inglês) a combinar um plano de lhe enfiar uma cabra com uma mensagem ao pescoço pela janela com uma mensagem do género “Little Portuguese girl starving in Tchindjenje, please help!”, em inglês, claro, porque ele não pesca nada de português! Pode ser que ele acredite que a cabra percorreu 100 km com a mensagem!

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