quarta-feira, 22 de setembro de 2004

Mais vale apanhar gravidez que apanhar doença!

Eu sou a única por aqui que não estou grávida ou não tem um filho com menos de 1 ano! O pessoal aqui tem filhos continuamente entre os 14 e os 45 para mulheres e os 80 para homens (não fosse a esperança média de vida ser de 42 anos). Pudera, não há mais nada que fazer! Um dos nossos motoristas, o sr. Zé, tem 14 filhos oficiais de 2 mulheres (a primeira morreu). Acho que é o record de filhos de tão poucas mulheres, porque aqui o pessoal tem normalmente pelo menos 3 a 4 mulheres ao mesmo tempo. Trabalhar na CIC dá-lhes a grande vantagem de poderem ter uma em cada terra, assim têm sempre uma casinha fixe onde ficar. Todas as mulheres sabem da existência das outras, é mesmo oficial, não é nada às escondidas. Assim, cada uma só tem que se esmerar para tratar melhor o marido para que ele passe o maior tempo possível com ela! É lindo! Claro que depois os maridos acham que são os únicos, porque vivem convencidos que há muito mais mulheres que homens. É verdade, porque muitos morreram na guerra, mas não é tão verdade assim, porque as mulheres não são sequer o dobro dos homens… Enfim, deixai-os viver felizes e com a cabeça pesada sem saberem. É que a poligamia só é permitida aos homens, eles pensam que elas são umas santas, e especialmente, pensam que sabem distinguir um filho que não seja deles (essa é que eu achei gira!). Ora os putos são todos iguais! E como é que é possível haver homens com filhos de 5 anos quando estiveram na guerra sem saberem das famílias nos últimos 10 anos?! E para não falar nos que morrem, que são às dezenas! A mortalidade infantil é enorme e os que nascem mortos também.

Mas já chega de divagações acerca de filhos, que pode ser que estas coisas ainda se peguem só de falarmos delas! Só mais uma frase de uma miúda de 14 anos, grávida: “Mais vale apanhar gravidez do que apanhar doença!” Genial, não é?

Obrigada pela solidariedade!

Na sequência do post anterior referente a um determinado senhor que tentava de tudo para me mandar coisas para o Tchindjenje, tive algumas respostas em tentativa de descobrir como me mandar o que eu preciso aqui. Se estavam a falar a sério gostaria de referir que, na verdade não me falta nada daquelas coisas essenciais à vida. Como podem ter lido, no Huambo encontra-se o essencial, nada falta que não faltasse em Portugal nos anos 80. Claro que no Tchindjenje não é assim, as carências são enormes, mas é por isso que eu tenho o privilégio de poder vir ao Huambo todos os fins-de-semana, não é como o pessoal que lá vive.

Para melhor vos explicar como as pessoas normais vivem aqui no Huambo (não como eu, obviamente, que ganho balúrdios e pelo menos, apesar de receber em Portugal e não o poder levantar aqui tive a oportunidade de trazer quanto quis) e se quiserem relembrar esses longínquos anos 80 onde não havia muita abundância de bens supérfluos para a comum das famílias, posso dar alguns exemplos de coisas que nessa altura eram um luxo, mas que, quem tinha dinheiro, como é agora o meu caso no Huambo e não era o caso da minha família na altura, podia comprar:
-era um luxo usar sabonete, usava-se sabão azul;
-era um luxo usar amaciador para o cabelo, doía a pentear;
-era um luxo comer iogurtes ou queijo ou gelados ou chocolate para o leite ou beber sumos ou refrigerantes, ou comer chocolates, eram muito caros;
-era um luxo ter água canalizada em casa, eu não tinha na casa onde vivi até aos 7 anos numa aldeia perto de Coimbra, ia buscá-la à fonte.
E alguns exemplos de como aqui se vive muito melhor no Huambo do que em Portugal nos anos 80:
-era um luxo ter televisão a cores, aqui toda a gente tem (na cidade, claro, não no mato!) mesmo que precise de comprar um gerador a diesel para a ligar;
-era um luxo ter telefone em casa, agora há muita gente com telemóveis, mesmo que tenham que ir ao café pedir para carregar a bateria…
A vida no mato é que é bem mais dura, mas o pessoal sempre viveu mal, isto não é nenhuma novidade para a civilização!

domingo, 19 de setembro de 2004

Muito mais acerca de matemática e conhecimento geral do mundo dos autóctones

Estas duas últimas semanas foram da minha compreensão acerca do entendimento do mundo e dos conhecimentos matemáticos das pessoas que habitam e trabalham no Tchindjeje. É completamente inacreditável que pessoas com o 9º ano não saibam fazer uma conta de somar ou de multiplicar, mas pior, que pessoas que têm o 5º ano não saibam copiar um número para um papel dos contadores de água. É absolutamente inacreditável!

Bom, inacreditável não é, uma vez que este pessoal nos últimos anos viveu a fugir das bombas e teve passagens administrativas na escola, mas de qualquer maneira, é praticamente impossível explicar a quem quer que seja como se faz qualquer tipo de trabalho. É que nem televisão têm! Eu, que não vejo televisão, começo a perceber a importância que a televisão teve na minha vida, uma coisa que nunca me tinha passado pela cabeça até ter conhecido um sítio onde para além de não haver televisão não há mais nada! Nem escola, nem livros, nem mapas, nem material escolar. Os professores sabem tanto como os alunos, isto é, nada… Porquê eu, a fazer um sistema de abastecimento de água com tantas facilidades como os contadores de água, para pessoas que não sabem o que é um número? Meto-me em cada uma!

A resolução para este problema vai começar a ser eu começar a dar aulas de generalidades. Ainda não sei como, mas provavelmente no pátio da nossa casa, com cadernos comprados por mim, lápis comprados por mim e um quadro feito praí com um pedaço de madeira, não sei. Alguém tem alguma sugestão minimamente pedagógica de por onde começar? Ai a falta que me faz ser professora! E ter sido explicadora de matemática e física do 12º ano não ajuda nada! Os meus “alunos” eram bons demais!

Estou a pensar começar por umas aulas de unidades de medida, porque é que elas existem, para quê, qual é a necessidade… Depois, umas aulas de cartografia, escalas, para que servem, etc. E depois não sei… É um tipo de trabalho para que não me sinto muito preparada, mas lá vai ter que ser… Aceitam-se sugestões!

O PAM

Depois de 2 meses meio perdida nas terras altas do Huambo, descobri que a maneira mais fácil de me adaptar à vida aqui, e já que os angolanos não facilitam a vida dos expatriados, é dar-me precisamente com os expatriados. São, na maior parte das vezes, tal como eu, pessoal que trabalha em ONGs. Vivem quase todos na cidade do Huambo, e não no mato como eu. No fim de semana encontro-me com eles muitas vezes e fazemos umas festinhas. Alguns vivem aqui mesmo ao pé, os da Halo Trust, a ONG que anda a fazer a desminagem. Há ainda os portugueses da FEC, professores, que também são muito fixes. E há muitos mais, mas com quem não me dou tão bem, da Cruz Vermelha, Solidarité, Médicos do Mundo, Safe Children, Movimundo, entre muitas outras ONG daqui. Portanto, estou sempre ansiosa que chegue o fim de semana e de me livrar das pestinhas do Tchindjenje.

Apesar do convívio muito mais fácil com o pessoal expatriado, esta semana tive uma conversa completamente surreal com um americano, responsável máximo do WFP (Programa Alimentar Mundial). Conheci-o este fim de semana com a conversa do costume,

(à lá José Saramago)

Olá, como te chamas, O meu nome é tal, E o teu, Trabalhas onde, Em tal parte, E tu, Eu trabalho numa aldeia chamada Tchindjenje, a 100 km daqui, mas venho passar o fim de semana ao Huambo, Ai sim, mas porquê,

(E a partir daqui é que começou o surrealismo)

Porque lá não há nada, especialmente porque não há nada para comer, preciso de vir comprar comida e como não há luz todo o dia, não há comida que aguente no frigorífico, blábláblá, Mas tem que haver comida, nós distribuímos,

(nota para os mais distraídos, o Programa Alimentar Mundial é responsável pela distribuição de comida às populações em situação de emergência, como seja os últimos anos de guerra aqui em Angola. Normalmente quando as situações passam de emergência a desenvolvimento, o PAM deixa de distribuir gradualmente comida e outros programas começam a incentivar o cultivo, o comércio, etc, logo o PAM não vai durar muito mais tempo cá, porque Angola já não se encontra em situação de emergência. No entanto, mesmo durante a distribuição do PAM, apenas as famílias ou as localidades mais fragilizadas recebem alimentos, normalmente para fazer face a casos severos de subnutrição, normalmente em situações, como o Tchindjenje é um caso, em que cultivar é complicado porque não há segurança nos terrenos de cultivo por causa das minas. Para além de que o PAM só distribui milho, óleo, açúcar e penso que mais nada)

(continuando com a história surreal)

Mas eu não sou um caso severo de subnutrição, com que lata é que vou ao PAM buscar comida que faz falta a outras pessoas, Então se precisares de alguma coisa, posso-te mandar pelo camião do PAM, mandas-me só um e-mail, Mas lá não há e-mail, Como não há, não tens Internet, Não, claro que não, nem há luz, Então telefona-me, Mas será que não percebes que também não há telefone, Como não há telefone, o que é que fazes afinal, sem net nem telefone, vês televisão, Também não há televisão nem rádio, Porquê, não há cabo lá, Cabo, mas aqui não há tv por cabo, Mas como, claro que há, Claro que não, é por antena, e lá precisaria de uma antena parabólica enorme, E como e que vais para lá, há aeroporto, Claro que não há aeroporto, mas há uma pista de terra batida, Então vais de avião, Claro que não, vou de carro, Mas a estrada está minada, E os vossos camiões de comida, não passam lá, Dão a volta, Mas dão a volta por onde, não dá para dar a volta, Mas queres dizer que passas na estrada minada, Pois, que remédio, Mas não pode ser, blábláblá…

Recordo que estamos a falar do chefe do PAM! Sempre pensei que o pessoal que aqui trabalha tivesse um pouco mais de noção da vida fora da redoma em que vive: numa casa espectacular, com cozinheira, segurança, carro, televisão por satélite, rádio fm, luz de gerador, água carregada à cabeça por alguém que não interessa quem até um poço com motobomba para por a água na torneira, telefone, Internet, etc, etc. Bom, o resto do pessoal tem, mas aquele gajo é mesmo uma tristeza. Aliás, estamos (eu, outro americano e um inglês) a combinar um plano de lhe enfiar uma cabra com uma mensagem ao pescoço pela janela com uma mensagem do género “Little Portuguese girl starving in Tchindjenje, please help!”, em inglês, claro, porque ele não pesca nada de português! Pode ser que ele acredite que a cabra percorreu 100 km com a mensagem!

sexta-feira, 10 de setembro de 2004

Matemática? Dotora, compriquei!

Esta semana fiquei particularmente escandalizada como as pessoas com melhores habilitações literárias (8º ano), e portanto consideradas como as melhores capacitadas de toda a administração municipal (a câmara municipal de cá do sítio), não conseguem fazer uma conta tão simples como 2+3x5. Quanto dá esta conta? 25? 17? Pois, eles não faziam ideia que era 17 nem depois de lhes explicar… Agora como é que eu vou explicar-lhes como é que se gere um sistema de abastecimento de água? Tenho impressão que nem sabem o que é um metro cúbico, quanto mais ler um contador de água!

Mais visitas, por favor!

Hoje recebi uma delegação do Ministério da Energia e Águas, de visita ao nosso humilde projecto, considerado um projecto-piloto em toda a ajuda humanitária alguma vez feita! Penso que ficaram um pouco decepcionados com a pequena aldeia em que está a ser implementado, mas foi muuuuiiiiitttto bm poder falar ao menos um dia com alguém que fale a mesma linguagem que eu, isto é, que perceba minimamente o que é uma obra ou especialmente o que é um sistema de abastecimento de água ou que é gestão ou o que é um modelo económico de exploração.

Avião

Tchindjenje, apesar dos seus praí 2000 habitantes, tem pista de aterragem. É certo que é de terra batida, mas também é certo que desde que cá estou já aterrou 1 avião e 3 helicópteros nessa pista, o último dos helicópteros esta semana. E é espectacular porque quando aterra qualquer coisa maior que uma andorinha naquela pista é uma festa naquela cidade!

Molhar o pãozinho no sangue

Na semana passada, logo na 2ª para começar bem a semana, sou surpreendida em casa por um pedido de ajuda ao centro de saúde às 21:45 (não esquecer que vivo com um médico) porque um carro tinha sido atacado a cerca de 10 km da minha aldeia, no meio do mato, por volta das 18 horas (é noite escura às 18). O bom disto foi que tivemos luz até às 24 horas, mais duas horas que o normal. O mau é que foram mortas a tiro 2 pessoas e feridas mais 2. Eu, que nunca tinha sabido nada de armas, começo a familiarizar-me com esta coisa de armas e tiros e bombas e ameaças de morte e etc. Aqui é tudo normalíssimo e encarado com muita naturalidade. E “molhar o pãozinho no sangue”, como eu costumo chamar a ficar a ver a desgraça alheia, é muito tradicional por aqui.

quinta-feira, 2 de setembro de 2004

Umbundo

Tenho andado a tentar aprender umbundo, mas não é fácil. Já consigo perceber algumas conversas dos trabalhadores das obras, especialmente quando usam palavras portuguesas pelo meio, que possivelmente não existem em umbundo. Mas mesmo assim acho que não vou sair daqui a saber dizer mais do que saudações ou os números. Costumo ter “aulas” nas viagens de carro entre o Tchindjenje e o Huambo e vou aprendendo as letras das músicas que vou ouvindo, mas acho mesmo que isto de aprender línguas com esta idade é mesmo complicado, veja-se o russo, andei um ano a ter aulas e já não me lembro de quase nada!

Ser catchindeli

As crianças começam a ser minhas amigas em algumas áreas onde vou muitas vezes. Agora tentam brincar comigo às escondidas. Divertem-se a chamar-me catchindeli (que não faço ideia se é assim que se escreve), que quer dizer branquinha, eu aceno-lhes, elas fogem e escondem-se a ver se eu vou atrás delas. No entanto, em sítios onde não passo muitas vezes, ainda há umas quantas que ficam a olhar para mim muito sérias e às vezes fogem a chorar ou agarram-se à mãe, que era o que acontecia sempre anteriormente. Eu devo ser mesmo feia!
A minha mãe tem a teoria de que as crianças não distinguem a cor da pessoa à partida, têm que ser ensinadas para perceber que são diferentes. Mas essa teoria é completamente refutada aqui. Eles de facto percebem que eu sou diferente desde bem pequeninos, até os que andam às cavalitas da mãe embrulhados nos panos. Até percebem que não sou albina, já que aqui há alguns e ninguém foge deles.

O reino da Chiaca

Descobri esta semana que aqui a aldeia onde eu vivo faz parte do reino da Chiaca, um dos quatro reinos da província do Huambo (Bailundo e Chicoco são outros dois), dos doze de Angola. E como um reino precisa de um rei, o rei existe mesmo! O que eu também não sabia é que o rei vive aqui no Tchindjenje! Ainda não conheço o rei, nem sei como se prestará vassalagem a semelhante figura, mas dizem que o rei já me conhece a mim, o que é preocupante! Tenho que ir conhecer o rei brevemente! Como é que será que se veste? E terá coroa? Descobri ainda que os doze reis dos reinos de Angola fazem parte do Conselho da República, que é um grupo de conselheiros do José Eduardo dos Santos.
Um dia desenvolvo mais esta história dos reinos, quando souber quem é o rei e o nome dos reinos daqui. Tenho que ler a história de Angola numa versão melhor do que uma que já li, que, como tudo aqui, é propaganda ao MPLA e que não é muito explícita.